sábado, 22 de outubro de 2016

Acorrentados

Anyone for seconds? - Steve Cutts



Acorrentados

Parte dos meus heróis já morreram;
os vivos foram comprados
pela moeda que combateram;
os jovens esqueceram o quanto podem
e já não sonham além do que lhes pedem.

Todo grito foi sufocado:
reina um amor de porcelana,
que moldamos nas discretas
mentiras cotidianas.

A esperança segue acorrentada:
animal de estimação dos poderosos.
A alegria foi enclausurada
em blocos de faces coloridas.
A vida é um eterno acostumar-se,

silenciosamente pranteamos seu ritmo,
discretamente tapamos os ouvidos às adversidades,
que se acumulam, vingam-se na carne
e explodem em bombas de sangue.

(Fabrício de Queiroz)

sábado, 30 de julho de 2016

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Suicídio - Edouard Manet


Sobre a ira sutil do cotidiano.



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Depois de um tempo aquela beleza
já não se faz tão bela;
os rostos peculiares da multidão
se perdem distorcidos na igualdade;
a magia deixa de ter cor
e adquire tonalidades cinzas;

o sabor da comida não é mais diverso:
come-se para agradar as tripas;
o sorriso perde a espontaneidade:
sorrir-se para se disfarçar da vida,
que lentamente deságua no oceano
e se perde de si mesma.

(Fabrício de Queiroz)

quarta-feira, 11 de maio de 2016

[Sem título]

No piér - Nikolai Pozdneev




[Sem título]

De teu rosto levemente inclinado,
guardarei as memórias mais sadias
que esta vida pôde me dar.

E antes que essa recordação passe,
que você, como um véu de imensidão
surrupiado pela manhã que se aproxima;

e antes que você suma da minha vida,
fruto de alguma doença da velhice:
Alzheimer, Parkinson, ou simplesmente caduquice
que faz seus netos riem de você;

e antes que a sua silhueta
inclinada para uma lua poderosa, amarela;
e antes que essa silhueta que me fez tão bem,
que me caprichou de destinos,
me preencheo de imensidão;

e antes mesmo que a última partícula
desta poeira caia sob o solo de verniz,
que chegue sob os roedores do porão
o meu pó inacabado;

e antes mesmo que você se incline para minha presença,
ou para os recônditos da minha memória fraudulenta,
que fique lá, escondida, presa em algum neurônio deformado;

e antes mesmo que toda esta bagunça passe,
que toda esta fortuna acabe,
eu olharei para sua silhueta cortada pela lua,
meu amor,

e lhe direi obrigado.


(Fabrício de Queiroz)